Páginas Soltas | Espaço de leitura@distância

Com o propósito de estimular o gosto pela leitura e pela escrita, a Biblioteca@distância propõe-se, aqui, partilhar textos literários integrais. Estes serão igualmente divulgados nas redes sociais da Biblioteca, a fim de permitir o acesso de todos à literatura.

Texto 1

Luta de Classes Vocabular

Ricardo Araújo Pereira, Estar Vivo Aleija, Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2018.

Certas palavras têm mais prestígio do que outras. A palavra desfalque olha de cima para a palavra roubo – e, por isso, o elegante autor de um desfalque distingue-se de um vulgar ladrão. As sentenças judiciais costumam ser bem mais pesadas para o segundo, por pouco que ele roube, do que para o primeiro, por mais que ele desfalque. Ora, a minha vida decorre inteiramente num universo lexical desprovido de prestígio. Tirando fugazes momentos em que, no entender de certos operadores de telemarketing, eu sou um cavalheiro, na esmagadora maioria do tempo eu sou um gajo. Todas as palavras usadas para me descrever a mim e ao meu mundo são triviais. Por exemplo, na última ceia, como é sabido, Nosso Senhor Jesus Cristo bebeu por um graal. Nunca me aconteceu. Os meus amigos e eu, quando jantamos, bebemos sempre por copos. Nunca vamos tomar uns graais. São sempre vulgares – e, por vezes, plásticos – copos. Muito provavelmente, também não terei um solene leito de morte. Como é óbvio, durmo numa cama. Devo lá morrer. Outro exemplo: nos livros, as personagens retiram-se com muita frequência para os seus aposentos. Não é o meu caso. Eu vou para o meu quarto. Quando os meus pais (quando eu era pequeno), ou a minha mulher (agora) me põem de castigo, é para o quarto que me mandam.

Sucede que as palavras determinam a qualidade das coisas, às vezes vou a um desses novos restaurantes em que os pratos levam dez linhas a descrever. No meu tempo não era assim. Os pratos eram designados por uma palavra só. Feijoada. Chafana. Cozido. Hoje, sinto que me falta formação académica para almoçar lascas de bacalhau em azeite a baixa temperatura sobre cama de puré de grão de bico e espinafres baby com redução de balsâmico, alho e ervas finas. E, quando a comida chega à mesa, descubro sempre que desfrutei mais da descrição do prato do que da sua ingestão. As palavras são mais ricas do que a comida, mais saborosas do que a comida. O discurso sobre a comida é melhor do que a comida, faz a comida melhor do que ela é. Na minha vida isso é impossível. Palavras cruelmente banais descrevem a minha evidente banalidade. Não hei de falecer no meu leito de morte após uma noite de graais. Vou morrer na cama depois de ter estado nos copos. E já será uma sorte.

Texto 2

Túnel do tempo

Gregório Duvivier, Caviar é uma ova, Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2015.

Caro Gregório-mais-velho,

Quem te escreve é o Gregório-de-7-anos-de-idade. O motivo dessa carta é o seguinte: percebi, por experiência própria, que o tempo muda as pessoas (em geral, pra pior). A prova disso é que é insuportável brincar com qualquer pessoa que tenha mais de dez anos de idade. A não ser com a vovó Ivna, que é o único adulto que se diverte brincando de torremoto ou aprendendo a jogar paratiparara. Modéstia à parte, acho que estou, agora, no meu auge. Faço toda a sequência do paratiparara com o meu melhor amigo Rodrigo em 17 segundos. Por isso te escrevo, Gregório-piorado: para te esclarecer sobre algumas coisas que você tenha esquecido daqui a 20 anos. Em primeiro lugar, nunca deixe de ouvir Beatles, e nunca ache que tem alguma coisa mais legal que Beatles, porque não tem. Em segundo lugar, aprenda a tocar algum instrumento direito. Assim, quem sabe a Fanny te dá bola. Terceiro lugar: nunca deixe de brincar de torremoto. Caso você tenha esquecido, são pedaços de madeira que podem virar torres, ou casas, ou carros. Ou podem ser só pedaços de madeira, se você quiser jogar nos amigos. Resumindo: envelheça igual a vovó. Ah, e tenha uma casa cheia de cachorros. E videogames. E de preferência case com a Fanny. E por favor: continue melhor amigo do Rodrigo.

Um abraço.

Texto 3

Tatiana Faia, Um Quarto em Atenas, Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2018.

A BALADA DE ANTOINE & FROSTY

esperei pela chuva
de chapéu posto

quando eles se arrastaram
longamente pela linha
com o ímpeto com que
milhas e milhas de carruagens vazias
entraram na estação
estudei com cuidado e olhos míopes
e sem qualquer erudição
o horário em frente do meu nariz

sei que não estou viva
dentro da função desta espera
a que ruy belo chamou
tempo detergente
e eu não considerei
coisas óbvias
como
como é ser tu
ou o meu desprezo
pelos jogadores
ou concessões dos meus amigos
às convenções sociais
a posições mais confortáveis
empregos melhores
em termos de progressão de carreira
os gestos neutros de todos os dias
como se fossem um sentido

Imaginei antes que nunca mais
te tornasse a ver
que algumas partidas sem retorno
ainda me restam
como balas num revólver
para um jogo de roleta russa
e não indaguei
– porque a humildade de um poeta
é não esperar um troco
ou esperar sempre troco –
que trompetes
e clarinetes
haviam de arrastar-te
de volta a casa
ou se é possível chegar antes
de qualquer pergunta
sabendo que o mais fúnebre dos gestos
que me restam
é este país
ou o quão facilmente

antes do primeiro café
olhando a escuridão da manhã
meditar sobre
os erros de ortografia de t.s.eliot
ou o que significa metaforicamente
não saber soletrar
o ar que equilibro
em redor de um ombro lesionado
e a rotina com que se desemprega
a memória
e me despeço do ofício
de recordar
porque o ligamento
que se rompeu
não será cicatrizado

esse deslocamento não é
sequer a condição de este ombro
ou o que tu pensas que seja
nem este português
ser a espécie de espanhol
que tu imaginas ser
uma palavra que se cala no fim
que vive lentamente
como um dia cumprido
e me devolve o pouco de morte que me cabe

que é como dizer durante um ano inteiro
não escrevi nada
nem sequer uma palavra
e no entanto ninguém me costurou
a fala ninguém veio ganhar de mim
a última palavra
em termos de conversa acabada
o meu único dever
é capaz de ser esta espécie de clareza
ao fundo do cansaço
entrever que tudo isto
ainda se vai conjugar
como um quadro de manet

Nenhuma descrição de foto disponível.
Partilhar: